Na idade das trevas
Revista Veja, 18/11/2009
Desde 1985, o Brasil sofre, em média, um blecaute de proporções nacionais a cada seis anos. A confiabilidade do nosso sistema, portanto, é baixa. O governo não consegue jogar luz sobre as causas do problema. Sua única preocupação é tentar provar que "o apagão de Lula" é bem menor que "o de FHC". É irracional.
Na terça-feira passada, 10 de novembro, às 22h13, o Brasil acendeu as velas para enfrentar mais um blecaute de dimensões nacionais. Sim, mais um.
A frequência com que o nosso sistema de energia elétrica entra em pane é inquietante. Desde 1985 temos, em média, um mega-apagão a cada seis anos.
Desta vez, a falta de luz afetou, em maior ou menor grau, dezoito estados, deixando às escuras 88 milhões de brasileiros.
Nosso sócio na geração elétrica em Itaipu, o Paraguai, também foi tirado da tomada. São Paulo e Rio de Janeiro foram os estados mais amplamente atingidos, mas a anormalidade se fez sentir até no Acre, no Rio Grande do Sul e no Rio Grande do Norte.
Foi o maior apagão da história brasileira em extensão. No total, 28.000 megawatts, ou 45% de toda a energia que estava sendo consumida no Brasil naquele momento, sumiram dos fios.
A situação só foi normalizada cinco horas e 47 minutos depois. Raiava a manhã quando a última subestação derrubada pelo blecaute se recuperou.
O Brasil voltou à normal. Sim, mas até quando?
Pelo seu desenho estrutural, qualidade de manutenção das redes e base de geração de energia, o sistema elétrico brasileiro tem uma eficiência de 95%.
Isso significa que o sistema convive com uma janela de incertezas de 5% (1/20), o que, estatisticamente, aponta para uma grande falha a cada vinte anos.
Como os blecautes têm ocorrido com frequência bem maior (1985, 1999, 2002 e 2009, para citar os mais recentes), é inevitável concluir que o sistema funciona aquém de sua eficiência projetada.
Isso decorre de diversos fatores:
- Primeiro, do acentuado descontrole do regime de chuvas, que torna o nível dos reservatórios uma loteria.
- Segundo, da inadequada manutenção de certos trechos das linhas de transmissão.
- E, terceiro, da própria operação do sistema.
Esse último ponto se refere à complexa administração entre produção e consumo de eletricidade por um vasto sistema integrado que cobre quase todo o território nacional em uma grade única.
Se há demanda demais e oferta de menos, o sistema pode cair e produzir um blecaute.
A situação contrária também é potencialmente perigosa.
Ela ocorre quando as usinas injetam muito mais energia nos cabos de transmissão do que o necessário.
Em ambos os casos, o desequilíbrio pode atingir limites máximos de segurança, fazendo com que os equipamentos do sistema, por precaução, se desarmem em cascata a ponto de derrubar toda a rede.
Não se sabe o que exatamente provocou o blecaute da semana passada, mas, como das outras vezes, ele ocorreu pelo conhecido efeito dominó que desliga equipamentos ao longo da linha de transmissão em virtude de um desequilíbrio sério que põe em risco a rede e os equipamentos dos usuários nas casas.
O que se sabe até agora é que o apagão teve início no principal ramal de transmissão elétrica do país, que leva toda a eletricidade de Itaipu, a hidrelétrica que mais produz energia no mundo, até São Paulo. De lá, boa parte da energia é redirecionada para o resto do país.
Por esse ramal, operado por Furnas, trafegam 20% de toda a energia brasileira.
O trabalho de transmissão é feito por cinco linhas. Três delas, as principais, vão de Foz do Iguaçu até a subestação de Tijuco Preto, perto de São Paulo. Elas passam por duas subestações, localizadas nas cidades de Ivaiporã (PR) e Itaberá (SP).
As duas linhas restantes, de menor capacidade, levam energia de Itaipu até a subestação de Ibiúna, também próxima à capital paulista.
O apagão começou nas três linhas principais, de potência mais alta. "Houve um curto-circuito na primeira linha, às 22h13.
Depois de 70 milésimos de segundo, a segunda linha foi atingida por outro curto. Mais 50 milésimos, e a terceira linha sofreu o mesmo problema.
Foi uma falha tripla, praticamente simultânea, antes de Itaberá", disse a VEJA Hermes Chipp, diretor-geral do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), autarquia federal que monitora todas as usinas e linhas de transmissão do país e goza de excelente reputação técnica não apenas no Brasil mas em suas congêneres do mundo.
Um curto-circuito se dá quando dois fios desencapados se tocam liberando instantaneamente uma energia descomunal que, de outra forma, teria se dissipado ao longo de todo o circuito. Daí o nome curto-circuito.
É um fenômeno comum no velho e enferrujado ferro de passar da casa da vovó ou chuveiro elétrico da casa de praia.
É raríssimo em uma rede de transmissão de energia.
A ocorrência de três curtos-circuitos de uma só vez numa rede de transmissão de eletricidade é, desde já, um evento a ser estudado no campo das probabilidades infinitas. O triplo curto-circuito desencadeou o efeito dominó que escureceu o Brasil na semana passada.
As subestações das três linhas principais caíram, interrompendo a passagem da energia de Itaipu.
As duas linhas de menor capacidade não conseguiram suprir, sozinhas, toda a demanda do sistema, e também caíram. Com as cinco linhas cortadas, o inevitável ocorreu. Itaipu passou a regurgitar toda a eletricidade que produzia, uma situação grave que, se não é aliviada rapidamente, provoca explosões nos transformadores e conversores da usina, inutilizando-a por meses e até anos.
Para evitar o desastre, todas as turbinas de Itaipu foram desligadas.
Nesse instante, São Paulo e Rio de Janeiro já estavam às escuras.
Para tentar evitar uma crise sistêmica de abrangência nacional, os computadores do ONS enviaram comandos eletrônicos às demais usinas do país instruindo-as a liberar toda a carga potencial, de modo a suprir em parte o sumiço instantâneo dos 14.000 megawatts de Itaipu.
Esses processos são automáticos. Levam menos de dez segundos. Mas de nada adiantou a rapidez da reação. Em um sistema integrado, como na circulação do corpo humano, o que ocorre em um ponto qualquer do percurso da eletricidade ou do sangue tem efeito sobre toda a rede.
Quando as usinas paulistas de Ilha Solteira, Jupiá, Água Vermelha, Taquaruçu e Capivara atenderam aos comandos do ONS, o sistema já estava em pane.
Os técnicos definem esses momentos cruciais como "colapso de tensão". Em um movimento de autodefesa, as subestações se desplugam uma depois da outra em cascata.
Diz Hermes Chipp: "Quando há um colapso de tensão, você perde o controle do sistema e torna-se impossível isolar o problema original".
Retomada a normalidade na manhã seguinte, permaneceu aguda a necessidade de saber o que exatamente provocou a cadeia de eventos que levou ao blecaute.
A versão do governo, mais preocupado com as reações em cascata do blecaute na saúde eleitoral da candidata da situação, girou em torno do pensamento mágico, pondo a culpa em forças além do controle do homem – não só do "cara".
Para acreditar na versão oficial, é preciso aceitar que três raios poderosos possam ter caído quase ao mesmo tempo sobre três linhas de transmissão – sendo que uma delas dista 20 quilômetros das outras duas.
O órgão que monitora tempestades e raios no Brasil em tempo real é o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Seus técnicos informam que não detectaram nenhuma descarga atmosférica significativa na região cortada pelas linhas de transmissão de Itaipu. Para serem exatos, os técnicos do Inpe destacam que no momento do blecaute caiu um raio a pouco mais de 30 quilômetros da subestação de Itaberá. Poderia esse raio ser culpado?
"A probabilidade de um raio ser a causa do desligamento é igual a zero", afirma Osmar Pinto Júnior, do Grupo de Eletricidade Atmosférica.
De onde vem tanta certeza?
Afinal, raios são fenômenos enigmáticos e de duração efêmera. O único raio registrado naquele instante era muito fraco para causar problemas. Ele tinha 12 000 ampères.
Para desligar uma única subestação, seria preciso uma descarga oito vezes maior – ou seja, um raio com corrente de pelo menos 100.000 ampères.
A versão oficial não se sustenta no universo da física. E é ainda mais frágil no campo da lógica.
Simplesmente, o sistema de energia brasileiro não pode ser vulnerável à queda de raios.
Primeiro porque o Brasil é o país sobre cujo território mais caem raios no mundo. São 60 milhões de descargas atmosféricas por ano. Pelo menos vinte delas atingem, a cada dia, uma linha de transmissão – sem que isso produza megablecautes.
Na última quinta-feira, a reportagem de VEJA estava em Itaipu e presenciou a passagem de uma tempestade de raios ao lado da usina. O que aconteceu? Os raios fizeram apenas cócegas em Itaipu. Na hora da tempestade, a usina fornecia 800 megawatts ao Paraguai. Os raios começaram e houve redução da carga para 720 megawatts. Em quinze minutos, tudo havia voltado ao normal. Isso acontece em média uma vez por mês. É rotineiro. O que não é rotina é raio provocar blecaute. Não deveria também ser rotina de governo dar como "caso encerrado" um blecaute que infernizou a vida de 88 milhões de brasileiros e cuja causa permanece um mistério.
Apagão: descentralizar sistema de energia pode evitar novo blecaute
11 de novembro de 2009 Por Luiz De França, Marina Dias, André Pontes Veja.com
O Brasil precisa descentralizar a geração e a transmissão de energia elétrica para evitar novos apagões generalizados, como o que deixou 18 estados às escuras nesta terça-feira.
Essa é a advertência de especialistas do setor ouvidos por VEJA.com.
Segundo Ernesto Cavasin, chefe do serviço de mudança climática da PricewaterhouseCoopers, a alternativa seria investir em pequenas e médias empresas capazes de produzir regionalmente energia alternativa como a biomassa, eólica (dos ventos), e de outros recursos naturais.
"Mesmo que essa energia esteja ligada ao atual sistema de transmissão interligado, esses pólos geradores seriam capazes de assumir sozinhos o abastecimento de uma determinada região, evitando um apagão geral", afirma Cavasin.
"Como o governo não incentiva esses negócios, o mercado fica dependente desses grandes projetos energéticos, que só faz aumentar a tensão das linhas de transmissão", continua.
"Os Estados Unidos, que são tão grandes territorialmente quanto o Brasil, não têm um sistema de interligação como o nosso. Lá, é mais fácil encontrar pequenos e médios geradores integrando o sistema de geração e transmissão que no Brasil."
Para o professor Ennio Peres da Silva, coordenador do Laboratório de Hidrogênio e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético da Universidade de Campinas (Unicamp), riscos de apagão sempre vão existir, mas é possível diminuí-los com investimentos em uma operação mais eficiente.
"A gente dificilmente ouve falar desses problemas em países ricos, como os da Europa, porque eles investem pesado nisso." Silva ressalta, no entanto, que os investimentos para evitar blecautes são grandes - e os custos incidiriam na conta do consumidor.
"Ou a gente convive sempre com o inconveniente de um apagão a cada 10 ou 15 anos, ou decidimos pagar mais por um sistema mais seguro."
Linhas - Na opinião do Professor Carlos Alberto Canesin, da Faculdade de Engenharia da Unesp de Ilha Solteira, os problemas estão na fragilidade e na falta de linhas fortes de transmissão extras.
Segundo Canesin, quando essas linhas caem, por uma fatalidade qualquer, não há nenhum sistema que segure o transporte de energia para os principais centros consumidores do país. "Por isso foi necessário ativar dispositivos de segurança, que acionaram o desligamento da usina hidrelétrica de Itaipu." Para ele, novas linhas de transmissão que corressem em paralelo às existentes resolveriam esse problema na medida em que criariam dispositivos sobressalentes - e eles poderiam ser utilizados no transporte de carga elétrica às principais redes de transmissão. "Além de aumentar a confiabilidade do sistema, evitariam a parada forçada das usinas, como a que ocorreu em Itaipu."
Mas é a falta de gestão pública que o professor Ildo Sauer, da Universidade de São Paulo (USP), considera o principal problema que levou ao apagão. "O sistema interligado de transmissão é extremamente positivo. Nosso sistema é muito bom, mas é preciso planejá-lo, construí-lo e operar adequadamente. O negócio é que quem opera não sabe o que está fazendo. É um problema de gestão."
Mesmo admitindo que acidentes possam ocorrer, Sauer lembra que o sistema é projetado para perder um dos equipamentos e seguir funcionando sem causar o efeito dominó. "Jamais deveríamos ter um apagão como o de ontem."
Interferência - A quantidade de empresas interferindo no sistema de geração, transmissão e distribuição da energia também é um dos fatores que contribuem para a falta de gestão elétrica no país. A afirmação é do físico Luiz Pinguelli Rosa, diretor da Coppe, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
O Brasil tem hoje cerca de 50 empresas no setor, entre elas estatais como Furnas e Eletrobrás, a Agência Nacional da Energia Elétrica (ANEEL), e um Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). "Isso é herança da privatização que não foi bem pensada", afirma. Pinguelli defende a adoção de um sistema similar ao da França, considerado um dos mais simples do mundo. "No Brasil, existem linhas que são subdivididas em trechos e cada um com uma empresa diferente, que tem critérios próprios, o que torna inviável uma padronização do sistema", afirma. "As vezes um manda levantar, outro manda sentar. E isso só atrapalha."